O Superior Tribunal de Justiça (STJ) viu saltar o número de pedidos de habeas corpus (HCs) para o cultivo de cannabis em casa. O total chegou a 51 processos até o fim de outubro de 2023 em comparação aos 19 do ano passado, mostram dados da Corte obtidos pelo JOTA.
O ministro Sebastião Reis Júnior atribui os números a uma mudança de percepção: anteriormente havia receio em se discutir o tema ou, ainda, a ideia de que pedidos seriam negados na Justiça.
O cenário mudou, sobretudo a partir de 2022, com a concessão de salvos-condutos. O levantamento ilustra essa tendência: 56,6% dos 90 pedidos de HCs recebidos desde 2018 chegaram à Corte neste ano.
“O fato de o tribunal ter enfrentado a questão abriu as portas (para esse aumento). As partes se sentiram mais confortáveis para debater. A partir do momento em que o tribunal enfrentou (o tema), de forma positiva para aqueles que têm interesse, acho que incentivou que fosse levado ao debate”, explicou ao JOTA.
Reis, presidente da 6ª Turma do STJ, avalia que o número de pedidos de salvo-conduto tende a cair a partir de 2023. Isso porque, agora, os ministros e as instâncias inferiores devem aplicar o precedente recém-estabelecido pela 3ª Seção, a favor da concessão de HCs, a processos parecidos.
Não será mais necessário levar os casos ao colegiado, podendo proferir decisões monocráticas. Com a concessão dos salvos-condutos, o plantio caseiro passa a ser permitido aos pacientes nas condições das decisões, como a quantidade de plantas necessárias segundo a recomendação médica.
Já o ministro Rogerio Schietti Cruz disse, em entrevista ao JOTA, que espera que as decisões da Corte levem órgãos como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Câmara dos Deputados e o Senado à reflexão. Na visão dele, a discussão em torno do tema deve ser construída com olhar científico, laico e sem preconceitos.
“Como são decisões que provêm de uma Corte nacional com a missão de interpretar o direito federal, espera-se que produzam algum tipo de reflexão. No caso da Anvisa, por exemplo, uma regulamentação que se espera há muito tempo, uma reavaliação portanto, das hipóteses. Da parte do Congresso, também, embora seja uma pauta que costuma ter um apelo moral e até religioso”, afirmou.
O ministro pondera que as decisões da Corte não têm a finalidade de pressionar instituições ou de interferir no Legislativo ou no Executivo. Afinal, são poderes independentes.
“Acho que, pelo menos, vão ter que debater o assunto. Acho que nós temos que enfrentar. É uma realidade, uma situação atual. O mundo todo está enfrentando. Esse preconceito da Cannabis deve ser superado. Espero que a decisão do tribunal ajude nisso”, disse o presidente da 6ª Turma.
Tanto Schietti quanto Reis, considerados duas vozes proeminentes no STJ a favor da liberação do plantio Cannabis para fins medicinais, concordam que a Corte já pacificou o assunto. Além deles, destacam-se os ministros Ribeiro Dantas, presidente da 3ª Seção, e Reynaldo Soares da Fonseca.
Ano | Número de pedidos de HCs |
2018 | 2 |
2019 | 1 |
2020 | 7 |
2021 | 10 |
2022 | 19 |
2023 (até 30 de outubro) | 51 |
TOTAL | 90 |
Fonte: STJ
Os ministros avaliam que definiram o posicionamento em torno do tema em setembro, quando a 3ª Seção concedeu habeas corpus para que um paciente pudesse plantar 15 mudas de Cannabis sativa para uso pessoal e somente durante o tratamento. A decisão consolida o entendimento da 3ª Seção — que reúne os integrantes da 5ª e da 6ª Turma, que atuam em direito penal — sobre o tema.
O placar da votação terminou em 6 a 2, com debate iniciado em agosto pelo voto do relator, Messod Azulay Neto, contrário à concessão do HC. O ministro defendeu que o paciente deveria pedir para o Estado custear o medicamento à base de Cannabis, não o plantio. O argumento é de que a extração caseira do óleo da planta poderia não conter as concentrações necessárias da substância ao tratamento.
Schietti e Reis reagiram ao voto dele, apontando-o como um retrocesso. O desembargador convocado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), Jesuíno Rissato, puxou o pedido de vista, o que suspendeu o julgamento em agosto.
O voto do relator foi interpretado como uma tentativa de modificar a posição firmada no STJ. A 5ª e a 6ª Turma já vinham concedendo HCs em casos semelhantes antes de Azulay entrar para a Corte, em dezembro de 2022.
Além dele, João Batista Moreira se tornou outra voz dissonante em relação à Cannabis medicinal na ocasião. O magistrado, que ocupa uma vaga temporária no STJ como desembargador convocado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), antecipou o voto para acompanhar Azulay após o pedido de vista.
Leia como votaram os integrantes da 3ª Seção:
Ministros | Voto |
Messod Azulay Neto | Contra a concessão de habeas corpus para o plantio caseiro de Cannabis sativa para fins medicinais |
João Batista Moreira | Contra a concessão de HC |
Jesuíno Rissato | Autor do pedido de vista, votou a favor de conceder o HC |
Laurita Vaz | A favor da concessão de HC |
Sebastião Reis Júnior | A favor da concessão de HC |
Rogerio Schietti Cruz | A favor da concessão de HC |
Reynaldo Soares da Fonseca | A favor da concessão de HC |
Antonio Saldanha Palheiro | A favor da concessão de HC |
O diretor da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas (Rede Reforma), Emílio Figueiredo, avalia que as decisões do STJ podem vir a pressionar a Anvisa e o Congresso Nacional.
“Hoje, a falta da regulamentação do cultivo é o principal gargalo para o ciclo completo da Cannabis no Brasil. A justificativa de que a Cannabis não cresce legalmente no Brasil já não pode mais ser adotada pelas autoridades”, declarou o advogado.
Eram apenas dois pedidos de salvo-conduto no STJ em 2018, início da série histórica compilada pelo tribunal. Na Anvisa, o primeiro passo veio três anos antes, com a retirada do canabidiol (CBD) da lista de substâncias proibidas e a permissão para uso como medicamento controlado. A liberação tem avançado a passos lentos, dizem especialistas.
A agência liberou a prescrição do tetrahidrocanabinol (THC) isolado ou com CBD em 2016, regulamentando-o. O aval ao primeiro medicamento, contra espasmos prolongados da esclerose múltipla, veio em 2017.
A Anvisa avaliou duas propostas em 2019: uma para o cultivo com fins medicinais e científicos e outra, para o aval a medicamentos. Mais restritiva, a segunda venceu. A primeira foi arquivada.
Foi nessa época que o ex-presidente Jair Bolsonaro indicou Antonio Barra Torres, hoje diretor-presidente, para a diretoria da Anvisa. Na ocasião, especulava-se que seria uma manobra dele para barrar a maconha no Brasil.
A flexibilização sofreu um revés em julho deste ano, quando a Anvisa proibiu a importação da flor de Cannabis ou de partes da planta para coibir o uso ilegal. Houve prazo de 60 dias para concluir processos em andamento.
“Entendemos que estava havendo uma incompreensão da norma, na medida em que autoriza medicamentos industrializados e não produtos in natura”, disse o contra-almirante da reserva da Marinha no evento “Diálogos”, realizado pelo JOTA em setembro.
Schietti, por sua vez, diz que eventuais desvios não podem barrar o uso medicinal. “Existem desvios de conduta, abusos, pessoas que se valem dessas autorizações para, eventualmente, dar à Cannabis outro uso que não seja medicinal. Mas são exceções e como exceções devem ser tratadas”, afirmou.
Casos do tipo precisam ser vistos sob outra ótica: “Se tivermos notícia de pessoas que estavam importando componentes derivados da Cannabis que possam ter, por exemplo, um fim recreativo, deve ser objeto de outra análise. Mas isso não retira o valor e a necessidade de se autorizar que pessoas possam se tratar com Cannabis”, argumentou o ministro.
Confira a linha do tempo dos principais fatos na Anvisa:
2015 | CBD sai da lista de substâncias proibidas |
2016 | Medicamentos e produtos com THC podem ser prescritos |
2017 | Aprovação do primeiro medicamento à base de Cannabis |
2019 | Aval à importação de medicamentos à base de Cannabis e arquivamento da proposta para liberar o plantio em casa |
2023 | Proibição à importação de partes da Cannabis sativa |
O debate sobre Cannabis no Judiciário está longe de se limitar ao STJ. O Supremo Tribunal Federal (STF) avalia a descriminalização do porte de maconha no Recurso Extraordinário (RE) 635.659, que questiona a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006).
O placar marcava 5 votos a 1 para descriminalizar o porte quando o ministro André Mendonça pediu vista, interrompendo o julgamento em agosto. Faltava, portanto, um voto para a atingir a maioria na Corte.
Além disso, há 6 votos a 0 para diferenciar traficante e usuário. O STF ainda deverá fixar uma tese sobre a quantidade de maconha permitida por pessoa caso a liberação se concretize.
Saiba como votaram os ministros até o momento:
Ministros | Voto |
Gilmar Mendes | A favor da descriminalização do porte de maconha e de distinguir usuário e traficante |
Edson Fachin | A favor da descriminalização do porte de maconha e de distinguir usuário e traficante |
Luís Roberto Barroso | A favor da descriminalização do porte de maconha e de distinguir usuário e traficante |
Alexandre de Moraes | A favor da descriminalização do porte de maconha e de distinguir usuário e traficante |
Cristiano Zanin | Contra a descriminalização e a favor de distinguir usuário e traficante |
Rosa Weber | Antecipou voto a favor da descriminalização do porte de maconha e para distinguir usuário e traficante |
Além de Mendonça, faltam os votos de Carmen Lúcia, de Dias Toffoli e de Luiz Fux. O prazo para retomar a análise do caso, sob relatoria de Gilmar Mendes, é de 90 dias.
Para Schietti, uma eventual descriminalização trará um “efeito no sistema penitenciário muito grande”. O STJ, assim como as instâncias inferiores, deve aplicar o posicionamento definido pelo Supremo em processos semelhantes.
“Teremos imensa quantidade de pessoas que já foram condenadas que passarão a ter direito de rever penas. Com isso, teremos pessoas cumprindo pena que serão desencarceradas”, explicou o ministro.
Já Figueiredo, da Rede Reforma, lembrou que falta a fixação da tese. “Sem saber como será a modulação dos efeitos da decisão de descriminalização no STF, é difícil prever a influência nos casos do STJ. A tendência é de que o porte de Cannabis para consumo próprio se torne um ilícito civil, de modo que seguem importantes as decisões do STJ sobre o excludente de ilícitude”, disse.
No STJ, o debate sobre Cannabis ultrapassa a esfera criminal. A 1ª Seção, que atua em casos de direito público, suspendeu ações sobre o plantio de cannabis para fins medicinais, farmacêuticos e industriais na Justiça em todo o Brasil. Essa decisão se aplica a casos individuais e coletivos até que a Corte estabeleça um precedente para o tema.
O colegiado aplicou um Incidente de Assunção de Competência (IAC) a um caso em que uma empresa de biotecnologia pede aval para importar sementes de Cannabis para plantar, vender e explorar industrialmente. Uma decisão anterior do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) entendeu que não cabia ao Poder Judiciário decidir em relação à autorização diante dos interesses empresariais.
O processo está sob a alçada da relatora, Regina Helena Costa, que pediu posicionamento à Secretaria Antidrogas do Ministério da Justiça e Segurança Pública, ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), ao Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, ao Conselho Federal de Medicina (CFM) e à Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis Sativa (SBEC). Procurada pelo JOTA, a ministra não quis se pronuncia
“A expectativa é que a jurisprudência pelo cabimento do HC para cultivo de Cannabis continue a ser qualificada até se tornar uma decisão erga omnes, de modo que o salvo-conduto deixe de ser privilégio de alguns e se torne direito de todos os pacientes. Na esfera cível, a expectativa é pelo julgamento do IAC, com decisão geral pela autorização do cultivo para fins medicinais, farmacêuticos ou industriais”, continuou Figueiredo.
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